sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Manchas de Memória

E ledo, incutido por uma luz que investia dominante por entre o leito, de um estofado de papel esterilizado e colcha que pinicava, de parafernálias, num estetoscópio me fundia a tez, donde um arfante eu, incubado e dissoluto, morria. Atacado, me prostrava risível ao encanto do réquiem. Na ala hospitalar, enxergando o fim dos maiores anos de minha baixa vida. D’um tráfego por entre minhas memórias, pudera falar, mas ultrajado por um tubo de oxigenação eu não me deixariam clamar... Além disto, estava cego demais para quaisquer contatos e era melhor, ver o mundo em arte, em aquarela.


Dentro da córnea, jaziam feita viagens, que me encontrava aos sonhos da jovialidade, numa praça e dentre tantas pessoas, meus olhos procuravam por ela. Do vento brincando comigo, do sol ainda amigo, estava eu a andar de bicicleta, o barulho da catraca tão velha quanto eu agora, guinando a bicicleta de aros tortos, dum garoto que era, desnorteado em pulso, guidom.
Lá estava ela, estava em roupas caseiras, em um vestido de alças, branco florido... Sentada num banquinho de pedra, com a luz do sol em seu sorriso. E o vento a balançava fracamente de seu cancro. Tentava, eu, seu consentimento e aprovação? Talvez procure isto até hoje.Indubitavelmente, o que importava, estava no meu sorriso aberto de minha infância pueril.


“Olha mãe! Consegui! Veja!” Eu dizia na bicicleta sem o controle do manche, e eu, velho e distante, olhava minhas memórias de longe, como um expectador irrelevante. Como se me percebesse, ela deixou minha imagem nas memórias antigas e veio ao meu encontro, eu estava mais velho que ela... Ela se agachou, como quem falasse com uma criança, “Se machucou meu filho?” olhei-a com tristeza, nada havia mudado, minha voz saiu cansada e professoral “Não mamãe, estou bem...” disse sentando no balanço, que rangia nas engrenagens arcaicas.


Me vi caindo da bicicleta na banco de areia, ralando o cotovelo, o garotinho levantou e ajeitou as roupas, agora sujas... Agüentando a dor como o homenzinho que era, com orgulho no olhar, com íris faiscante de alma em espada e vontade em cunho. A mãe foi até ele lhe beijando o cotovelo, me peguei emocionado, velho e amolecendo... Tossi algumas vezes, a idade era devassa e como o casmurro que era, acometi pensando alto “Não mamãe, não é mais assim que se resolve as coisas hoje...” Ela se levantou, deixando seu filho voltar a bicicleta e voltou até mim “Não, Lucas, você sempre teve vergonha de mim, da minha labuta, sempre com vergonha”.


Me afastei balançando a cabeça negativamente, desde que fui aluno dela na escola, ela espalhava a dizer coisas sobre mim, da minha treva, achava bonitinho lhes falar de como me pegou uma vez, escondendo a foto de uma das garotas da sala da qual gostava, e ela nem sabia que tal garota, se sentava na minha frente... Das tantas coisas que contava, achando ser uma graça, que para mim, desgraçava... Ela me tirou do devaneio dizendo “Nunca tive vergonha de você, me orgulhava demais...” Empurrava meu corpo com as sandálias gastas, o balanço rangia mediante meu peso, fugia do olhar dela, que ela enxergasse o quanto mudei, do quanto eu não era mais aquele garoto que ela criou.


“Nós nunca conversávamos, nunca tinha tempo, não é mamãe?” Ela negou acenando “Não filho, você era difícil, era inteligente, independente, indiferente, mas sabia que te tratava bem, porque via que você limpava o prato da comida e nunca reclamava! Mesmo nunca elogiando...” E você me elogiava, mamãe? “Sempre!...” Ela parou de falar quando viu que eu discordava “Nunca pra mim”, fechei os olhos, inspirando pesadamente “Era difícil aquela vida, meu pai, meus estudos, minhas ocupações...” Ela consentiu “Sem amor, sem companhia, todos erramos...” E desci as escadinhas com a mãe ao encalço, dos garotos agora difusos em minha memória, como cavalheiros da Andaluzia brincando de pique.


Ela tirava alguns volumes grossos da sacola, três grandes compilações, “Meus livros!” ela disse com um sorriso infantil, passando a mão e se deliciando com a textura, os livros eram meus, era até algo tão sutil, pois ela nem conseguia ler mais, mesmo assim folheava as paginas deles, como se fossem dela. “Bonitos livros” Ela disse cravando os dedos nas dobras. “Como pode dizer que são bonitos, se a senhora é incapaz de saber o que conta neles?” Ela levantou pra cima em raiva “Não diga besteiras, sonso! Bonitos livros” Disse ela, olhei para o céu, seria aquela a aprovação que eu tanto procurava?


A resposta, para qual esperava, veio anos depois. Enquanto o trem balançava, me tirando de qualquer devaneio, tendo em média uns 30 anos, meu reflexo refletindo na janela, tremendo, impassível. Ao fundo, a paisagem se abria em montanhas, em final de tarde. Indo em direção da mãe enferma na capital, câncer terminal, seria então minha ultima provação?
Foi então que cheguei na cidade, ainda era madrugada... Os postes em vigília, minha única companhia até o hospital. Nele, já me pus dentro do corredor ante as indicações da recepcionista, fim do corredor, quarto 408, encostei a mão na maçaneta, temendo o que eu poderia ver, decidido eu...


“Desfibrilador” Disse uma voz distante de um médico encima do meu corpo e acima das minhas memórias. “Desfibrila...”

Um comentário:

Matheus Soldan disse...
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